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Ash Hollow

A Sala Sem Eco

02
Jul25

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A descida não foi longa —

mas cada passo parecia abrir uma camada na consciência.

 

A lanterna tremia nas mãos de Duarte,

mas a luz trémula que o guiava vinha de dentro da própria gruta.

Como se algo na pedra tivesse memória da luz.

 

O corredor estreito alargou subitamente, sem transição.

E ele entrou numa sala que não devia existir ali —

escavada por mãos que não conheciam ferramentas,

nem pressa,

nem piedade.

 

O teto abobadado parecia feito de ossos fossilizados.

As paredes, cobertas por inscrições incompletas, feitas com unhas,

ou com dentes.

 

E no centro…

 

uma mesa de pedra.

 

Não um altar.

Não um pedestal.

 

Uma mesa, como se ali se reunissem para falar… ou para dividir.

 

Em cima, pousada com precisão,

uma pequena peça de barro.

Oval.

Quebrada ao meio.

 

Duarte aproximou-se.

E ao tocar-lhe, o ar mudou.

 

O som do seu próprio respirar deixou de ecoar.

Como se ali, dentro daquela sala, o tempo recusasse devolver som.

 

Não havia vento.

Não havia pingos.

Não havia eco.

 

Só a presença.

 

E então ele percebeu —

não estava sozinho.

 

 

Do lado oposto da mesa,

algo começou a formar-se.

 

Não apareceu.

Não surgiu.

 

Desdobrou-se.

 

Como se estivesse sempre ali —

mas agora, quisesse ser visto.

 

Uma figura alta.

Sem rosto,

sem olhos,

sem nome.

 

Apenas presença.

 

Feminina e ao mesmo tempo ausente de género.

Como se o corpo fosse apenas um molde para conter a vontade.

 

E quando “ela” falou,

não foi com voz.

Foi com memória.

 

“Tu levas o nome.

Mas não a dívida.”

 

“Tu abres a porta.

Mas não foste chamado.”

 

“O ciclo pode ser quebrado.

Mas o custo… é o eco.”

 

Duarte tentou recuar.

Mas não havia saída.

A entrada desaparecera.

A luz da lanterna apagou-se.

 

Ficaram apenas os dois.

A sala.

A peça de barro quebrada.

E a escolha.

Ecos de Terra e Fome

02
Jul25

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Durante a madrugada, Duarte não dormiu.

 

Sentou-se junto à janela do quarto, caderno no colo, olhar fixo na rua deserta. A chuva caía sem força, apenas o bastante para transformar o mundo num espelho turvo. O nome — Alzima — reverberava na mente, mas agora não era o som que o assustava.

 

Era o silêncio que se seguia a ele.

 

A mesma sensação que sentira na casa de Ash Hollow.

 

Mas diferente.

 

Mais funda.

Mais entranhada.

Mais… faminta.

 

 

Pelas cinco da manhã, levantou-se.

Vestiu o casaco, guardou a lanterna, o caderno e a pedra.

Não haveria mais bibliotecas.

Não haveria mais textos escondidos.

 

Chegara a altura de ir ao lugar onde tudo começa.

 

A gruta.

 

Não como um curioso.

Não como um caçador.

 

Mas como alguém que finalmente compreendeu:

Alzima não era o inimigo.

Era a fronteira.

 

O verdadeiro mal… estava para lá dela.

 

 

A luz da manhã mal tingia o céu quando Duarte se aproximou novamente da fenda na pedra.

 

O silêncio da floresta era absoluto.

Como se a natureza ali segurasse o fôlego.

 

E agora, sim…

ele estava pronto para entrar.

 

Desceu.

 

Passo a passo, sentindo a humidade subir pelas pernas, o cheiro a terra antiga e coisa queimada entranhando-se no nariz.

O túnel era estreito.

O teto baixo.

 

Mas não escuro.

 

Uma luz trémula — impossivelmente profunda, impossivelmente viva — respirava mais adiante, oscilando como uma lâmpada pendurada no tempo.

 

E então, a voz.

 

Não gritada.

Não sussurrada.

 

Apenas sentida.

 

“Não vens buscar.

Vens devolver.”

 

Duarte parou.

 

O eco da frase não bateu nas paredes.

Bateu-lhe no peito.

 

E naquele instante, compreendeu:

não era ele que descobria a origem.

 

Era ele que era descoberto.

 

E ali…

na respiração quente da terra…

 

começava o verdadeiro confronto

A Palavra Antes do Nome

02
Jul25

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Duarte voltou à vila como quem regressa de um funeral — sem pressa, sem expressão, apenas com o peso de algo que ainda não tinha forma. Sabia o nome. Alzima. O velho da ermida murmurara-o como quem solta veneno pelos lábios. Mas Duarte percebia agora que um nome pode ser apenas a pele de uma coisa muito mais antiga.

 

Alzima era o rosto.

Mas o que vestia esse rosto?

 

 

Não regressou ao café. Nem ao quarto.

 

Foi direto à biblioteca paroquial, um edifício sombrio, paredes húmidas e chão de madeira que se queixava a cada passo. A bibliotecária não disse nada desta vez. Apenas fitou-o, como se já soubesse para onde ele iria. A chave estava no mesmo sítio de antes — pesada, ferrugenta, quente ao toque, como se tivesse sido usada há pouco.

 

Desceu ao andar inferior.

 

O ar ali era mais antigo que os próprios livros. Papel, suor, tempo, cera. Uma mistura que colava ao céu da boca e aos pulmões. As estantes curvavam-se sob o peso dos séculos. E entre elas, Duarte procurou algo que não dissesse o nome — mas o que veio antes.

 

Encontrou um manuscrito estranho, escrito com tinta de noz e anotado em várias mãos. Fragmentos de relatos, orações inacabadas, desenhos infantis com rostos riscados. Mas uma página, dobrada e escondida entre os textos, prendeu-lhe o olhar.

 

Era apenas isto:

 

“Antes de Alzima, houve silêncio. E no silêncio, fome.”

 

Mais abaixo, uma frase repetida três vezes, com traços cada vez mais irregulares:

 

“A palavra antes do nome não se escreve. Escava-se.”

 

 

Duarte deixou a biblioteca e saiu para a noite.

 

Não havia vento.

Nem estrelas.

 

As nuvens, presas no céu, pareciam parar o tempo.

 

A vila dormia, mas ele sentia algo acordado sob a terra, algo que o observava. Não com olhos — mas com presença.

 

Sabia que Alzima era apenas a sucessora.

Sabia que o buraco da mina não era uma passagem — era uma boca.

 

E agora compreendia: antes do nome, antes do rosto, há sempre uma vontade. Uma fome. Um ciclo. E essa coisa sem nome escolhera Madalena. Como antes escolhera outras.

 

Agora, talvez… estivesse a escolher de novo.

 

 

Ele não entraria na gruta amanhã. Nem no dia seguinte.

 

Antes, precisava de compreender o que a ilha escondia.

Não o nome.

Mas o chamado.

 

Porque o verdadeiro inimigo não grita.

 

Sussurra.

 

E se ele não souber distinguir o som… cairá como todos os outros.

 

Mas Duarte já aprendera uma coisa em Ash Hollow:

o terror antigo não pode ser vencido com coragem.

 

Só com conhecimento.

 

E silêncio.

 

O Nome Antes do Nome

29
Mai25

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A noite caiu antes que Duarte deixasse o sopé da gruta.

O frio da serra era diferente — não cortava, mas envolvia. Um silêncio húmido, feito de coisas que observam.

Ele sentia o peso da respiração vinda do interior da fenda, mesmo ao afastar-se.

Não como um eco — mas como um fio invisível que agora o ligava àquela abertura na terra. Uma ligação selada pela simples presença.

 

Desceu o trilho com passos cuidadosos, guiado apenas pela lanterna e pelo instinto.

A vila mais próxima era pouco mais do que um aglomerado de casas abandonadas e ruínas de pedra.

Mas uma estrutura permanecia — pequena, esquecida, quase engolida pela vegetação: a Casa dos Registos Paroquiais, erguida no século XVIII e fechada há décadas.

 

Duarte forçou a entrada com um empurrão lento.

A madeira cedeu com um estalo abafado, como um osso velho a partir.

Lá dentro, o cheiro era de humidade e papel morto.

 

Deslizou entre estantes tombadas, livros rasgados, pastas esfareladas por ratos e tempo.

Mas encontrou, ao fundo, o armário de ferro.

Trancado.

 

Estava prestes a desistir quando viu, junto ao chão, uma abertura onde outrora estaria uma ranhura de ventilação.

Introduziu a mão com esforço, sentindo farpas, teias e ferrugem.

Tocou em algo frio.

Retirou um envelope enrolado e lacrado com cera antiga, onde ainda se distinguia um selo quebrado com o símbolo oval — o mesmo da gruta.

 

Dentro, um único papel.

Amarelado.

Rasgando-se ao toque.

Mas ainda legível.

 

“Antes dela, houve outra.

Não mulher, não homem.

Mas algo que se fez carne para escapar à ruína.

 

Chamaram-lhe Aquela Que Se Recorda,

porque a terra esquece — mas ela, não.

 

O nome perdeu-se nos sismos e no sangue,

mas ecoa em certos cânticos dos mais velhos.

 

Alzima.

 

Era o nome antes do nome.

A raiz de tudo.”

 

Duarte dobrou o papel com mãos trémulas.

Alzima.

O som não era apenas estranho — era errado.

Como um nome que não devia ser dito, mas reconhecido.

 

Sentiu o chão estremecer, por dentro.

Não um tremor da terra, mas da pele.

Como se ao pensar o nome, algo nele tivesse sido visto.

 

Saiu da casa sem fechar a porta atrás de si.

Não importava.

Aquilo que estava acordado… já o conhecia.

 

E ao longe, muito longe, vindo da direção da gruta — ouviu, pela primeira vez, um sussurro.

 

Não era Madalena.

Era mais fundo.

Mais seco.

Mais antigo.

 

E dizia apenas:

 

“Chega, Duarte.

Lembra-te de mim.”

A Boca da Terra

22
Mai25

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O caminho para a antiga mina não constava de nenhum mapa turístico.

Duarte seguiu instruções vagas deixadas pelo velho da ermida, cruzando trilhos esquecidos e vegetação cerrada, como se a própria ilha quisesse esconder aquele lugar.

 

A tarde caía.

A luz tornava-se filtrada, sem cor.

O ar ficava mais espesso a cada passo.

 

E então, entre dois afloramentos de basalto cobertos de musgo, ele viu:

a gruta.

 

Não era grande.

Não se abria como as cavernas vulcânicas conhecidas da ilha.

Era estreita.

Vertical.

Como uma fenda aberta por dentro da terra, não por erosão… mas por vontade.

 

O exterior estava marcado.

 

À volta da entrada, na rocha, riscados com carvão ou cinza endurecida, os mesmos doze pontos.

Mas desta vez, não em espiral.

Em círculo perfeito.

E no centro… o símbolo oval.

Como um olho fechado.

 

Duarte acendeu a lanterna.

Mas a luz mal penetrava.

O interior parecia engolir o brilho.

 

Sentou-se numa pedra próxima.

Respirou fundo.

Fechou os olhos.

 

E ouviu.

 

Não vento.

Não água.

 

Mas respiração.

 

Como se algo lá dentro estivesse acordado.

Não se movia.

Não chamava.

Mas esperava.

 

E no fundo do peito, Duarte sentiu:

isto não é só um lugar.

É uma presença.

 

Mais antiga do que a bruxa.

Mais enraizada do que qualquer pacto.

 

A própria ilha, talvez.

Ou algo que nela se alojou antes de haver nome para o medo.

 

 

 

Duarte abriu os olhos.

Não entraria ainda.

 

Não por medo.

Mas por respeito.

 

Há buracos no mundo que não se atravessam com pressa.

Só com silêncio.

E memória.

 

E ele precisava de mais uma coisa antes de entrar.

 

Um nome.

 

Não o de Madalena.

Mas o do que estava antes dela.

 

E sabia onde ir procurá-lo.

A Entrada da Pedra

21
Mai25

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Duarte regressou ao quarto com a pedra ainda a arder-lhe na mão, embora estivesse fria.

O símbolo gravado nela — os doze pontos ligados pela espiral — parecia mover-se sob certos ângulos, como se fosse desenhado com matéria viva.

Mas não era truque de luz.

Era outra coisa.

Era memória.

 

Pousou a pedra sobre o pano branco que a mulher encapuçada lhe dera.

E ali, lado a lado, os dois objetos criavam um pequeno altar de silêncio.

Uma oferenda involuntária.

Ou um convite mais antigo do que a própria terra.

 

Sentou-se.

Abriu o caderno.

E escreveu só uma palavra:

 

Gruta.

 

Tinha agora um novo destino.

O velho falara de uma caverna perto de uma mina esquecida —

um lugar que os locais evitavam,

onde o símbolo aparecera antes da bruxa.

Talvez até antes da própria Madalena.

 

Aquilo… inquietava-o.

 

Porque até agora, tudo girava em torno da mulher sem olhos, da bruxa, da ceifeira de doze.

 

Mas essa pedra —

esse símbolo repetido —

dizia algo mais profundo:

 

ela não criou o ciclo.

Ela apenas o alimenta.

 

E havia algo mais fundo que ela.

Mais velho.

Mais paciente.

 

Algo que queria que ele visse.

Que ele entrasse.

 

Algo que o espera.

 

 

 

Duarte saiu ao entardecer.

Na mochila, o pano. A pedra. A lanterna. O caderno.

E um silêncio estranho no peito.

 

Não era medo.

 

Era consciência.

 

De que os próximos passos não seriam sobre o chão.

Mas sobre um limite.

Entre saber… e não voltar a não saber.

Os Que Sabem e Calam

21
Mai25

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Depois de sair do café, Duarte não voltou de imediato ao quarto.

 

Caminhou pelas ruas molhadas, como quem procura migalhas no nevoeiro.

Não esperava respostas visíveis — mas havia sempre alguém que sabe.

Alguém que ouve mais do que devia.

 

E ele tinha aprendido, desde Ash Hollow, que as aldeias falam.

Não nos jornais.

Não nos postos da GNR.

Mas nas feiras, nas igrejas, nos mercados de terça.

Nos sussurros entre portas semiabertas.

 

Foi junto à capela que o encontrou.

 

Um homem de rosto vincado, dedos manchados de tabaco antigo e olhos encovados de quem já vira de mais.

Vigia da pequena ermida.

Ou apenas alguém que gostava de estar perto da única cruz de pedra onde a chuva ainda batia com respeito.

 

— “Veio por causa da rapariga,” — disse, sem preâmbulo.

 

Duarte assentiu.

 

O homem olhou para o chão.

Cuspiu para o lado.

E então sussurrou:

 

— “Não foi a primeira.

Não será a última.

Mas esta… não devia estar aqui.”

 

Duarte aproximou-se.

 

— “Como assim?”

 

— “Há gente que a ilha escolhe.

Outros… são puxados.

Ela… veio sozinha.

Mas não foi por acaso.

As feridas atraem feridas.”

 

Silêncio.

 

O vento trouxe um cheiro de enxofre e hortelã.

 

— “E o símbolo no vestido?” — perguntou Duarte.

 

O velho não respondeu logo.

 

Depois tirou do bolso uma pedra escura, lisa.

Na superfície, o mesmo símbolo — os doze pontos e a espiral — gravado com faca.

 

— “Já vi isto antes.

Quando era novo.

Na boca de uma gruta perto da antiga mina.

Lá ninguém vai.”

Pausa.

“E quem foi… nunca voltou a falar.”

 

Duarte pegou na pedra.

Era fria.

Mas vibrava, como se pulsasse.

Como se ouvisse.

 

— “Madalena?” — arriscou ele.

 

O homem abanou a cabeça.

 

— “Não.

Madalena é só a mão.

Isto…

isto é o punho.”

 

 

 

Duarte guardou a pedra.

 

Tinha agora mais uma pergunta.

E menos margem para hesitar.

 

Porque há símbolos que nascem do medo.

Mas este… este era feito para recordar.

 

E tudo indicava que a memória daquela ilha… ainda estava bem viva.

A Hora do Silêncio

20
Mai25

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Duarte estava no café, o mesmo onde conhecera o velho da vila.

Chuva miúda escorria pela janela, e o mundo lá fora parecia feito de vidro molhado.

 

A senhora da casa de hóspedes chegou com o jornal dobrado.

Não disse nada.

Apenas pousou-o à frente dele, virado para a notícia.

 

DESAPARECIDA TURISTA DO NORTE

Última vista nas imediações da Caldeira.

Investigação sem resultados. Pertences intactos.

 

Inês Rocha.

Vinte e sete anos.

A foto dela sorria.

Como tantas outras antes dela.

 

Duarte passou os olhos pelo texto.

Leu os nomes.

As datas.

O local.

 

Depois pousou o jornal.

 

E soube.

 

Ela já não estava aqui.

Não perdida.

Não cativa.

 

Levou-a a bruxa, sim.

Mas como todas as outras… levou-a por inteiro.

No instante em que se quebrou o fio da hora.

 

Esse era o padrão.

 

Não havia tempo.

Não havia gritos.

Não havia luta.

 

Apenas um momento — e depois, o silêncio.

 

Duarte fechou os olhos.

Respirou fundo.

 

A dor era real, mas não dele.

A culpa… também não.

Mas a responsabilidade, essa…

essa agora era sua.

 

Não podia trazê-los de volta.

Nem inverter os passos.

 

Mas podia impedir os próximos.

 

Podia interromper o ciclo.

Ou pelo menos… ralentar-lhe o ritmo.

 

Porque este caso era diferente.

Mais antigo.

Mais entranhado na terra.

 

A bruxa não apenas alimentava-se.

Ela habitava.

 

E o que a prendia ali… ainda não tinha nome.

 

Duarte pegou no caderno.

Escreveu com a mão firme, sem hesitação:

 

“Não a posso salvar.

Mas posso salvar a próxima.

E talvez, no fim, impedir a última.”

 

O sino da igreja tocou ao longe.

Uma badalada seca.

Sozinha.

 

E ele soube.

 

O tempo começara a contar.

Não para a salvação.

Mas para o confronto.

O Quinto Desaparecimento

20
Mai25

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Chamava-se Inês Rocha.

Vinte e sete anos.

Natural de Braga.

Viajou sozinha para São Miguel após o fim de um relacionamento.

Publicou, dois dias antes, uma fotografia sorridente na Lagoa das Sete Cidades com a legenda:

“Silêncio bom. Paz, enfim.”

 

Nessa noite, ficou hospedada num pequeno alojamento rural, a poucos quilómetros da serra.

 

A dona da casa recorda-a com nitidez:

 

— “Muito simpática… mas não dormiu. Ficou na varanda. Disse que o silêncio estava estranho. Que o mar parecia mais perto do que devia.”

 

Na manhã seguinte, a cama estava feita.

A mala aberta.

O telemóvel no carregador.

Mas ela não estava.

 

Chamaram a GNR.

Cães, drones, voluntários.

Nenhum rasto.

 

Mas à noite… um som.

 

O vizinho do lado — homem viúvo, doente, sem histórico de alucinações — ligou à polícia a tremer.

Disse:

 

— “Alguém está na eira.

Não a vejo…

Mas ela canta com uma voz que parece feita de água.”

 

Quando os agentes chegaram, nada ouviram.

Mas no chão da eira… pegadas.

Descalças.

Pequenas.

Apontadas para a floresta.

 

Nos dias seguintes, os moradores passaram a evitar o local.

Porque de madrugada, entre as árvores, ouviam os passos.

Lentos.

Arrastados.

Seguidos por um choro baixo, que nunca parecia pertencer a uma só pessoa.

 

E então, numa manhã fria, apareceu o vestido.

 

Pendurado numa árvore seca, no limite do trilho da Caldeira Velha.

Não rasgado.

Não sujo.

 

Mas encharcado.

 

Com cheiro a terra molhada.

E um detalhe perturbador:

costurado na gola, com linha preta, estava um símbolo oval —

feito de doze pontos ligados por uma espiral.

 

Não havia sinal de luta.

Nem de fuga.

 

Só a ausência.

 

Como se Inês tivesse sido desfiada do mundo.

 

 

 

O relatório final dizia:

 

“Desaparecimento inexplicado. Sem indícios de violência. Caso arquivado.”

 

Mas quem vive perto da serra…

sabe.

Que naquela semana, as vozes voltaram.

E o número de pegadas aumentou.

Tecidos Antigos

20
Mai25

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De volta ao quarto, Duarte pousou o pano sobre a mesa como se fosse vidro.

A inscrição bordada — simples, firme — queimava mais do que qualquer livro oculto ou grito no escuro.

 

“Há caminhos que não se escolhem.

Mas há sempre quem os siga com os olhos abertos.”

 

A caligrafia era trémula mas confiante.

E o tecido… antigo.

Tão antigo que parecia ter vindo de um tempo em que os nomes ainda se sussurravam para não acordar as coisas enterradas.

 

Duarte sentou-se.

 

A presença da mulher ainda pesava no ar.

Não como ameaça.

Mas como aviso.

 

Ela não era Madalena.

Não era inimiga.

Nem aliada.

Era testemunha.

 

Uma daquelas que permanecem nas margens, que assistem ao que se move na escuridão sem intervir…

mas que, quando escolhem falar, fazem-no com peso.

 

Ele sabia que havia algo mais por trás do nome Saelrem.

Mais do que uma direção.

Era um fio — um vestígio antigo que cruzava séculos, pactos e quedas.

 

Voltou ao caderno.

Escreveu apenas uma frase:

 

“Nem tudo o que está vivo precisa de corpo.”

 

Porque agora compreendia:

 

A bruxa, o pacto, o hotel, o altar… eram manifestações.

Casulos.

Formas.

 

Mas aquilo — aquilo que começava a mover-se — não queria um corpo.

 

Queria uma linha.

Uma continuidade.

Um ritual que não fosse quebrado.

 

E Duarte estava a quebrá-lo.

Ao investigar.

Ao recusar o medo.

Ao lembrar.

 

Não era um escolhido.

Era um obstáculo.

 

E por isso, agora… estava marcado.

 

Não por maldição.

Mas por resistência.