O Nome Antes do Nome
A noite caiu antes que Duarte deixasse o sopé da gruta.
O frio da serra era diferente — não cortava, mas envolvia. Um silêncio húmido, feito de coisas que observam.
Ele sentia o peso da respiração vinda do interior da fenda, mesmo ao afastar-se.
Não como um eco — mas como um fio invisível que agora o ligava àquela abertura na terra. Uma ligação selada pela simples presença.
Desceu o trilho com passos cuidadosos, guiado apenas pela lanterna e pelo instinto.
A vila mais próxima era pouco mais do que um aglomerado de casas abandonadas e ruínas de pedra.
Mas uma estrutura permanecia — pequena, esquecida, quase engolida pela vegetação: a Casa dos Registos Paroquiais, erguida no século XVIII e fechada há décadas.
Duarte forçou a entrada com um empurrão lento.
A madeira cedeu com um estalo abafado, como um osso velho a partir.
Lá dentro, o cheiro era de humidade e papel morto.
Deslizou entre estantes tombadas, livros rasgados, pastas esfareladas por ratos e tempo.
Mas encontrou, ao fundo, o armário de ferro.
Trancado.
Estava prestes a desistir quando viu, junto ao chão, uma abertura onde outrora estaria uma ranhura de ventilação.
Introduziu a mão com esforço, sentindo farpas, teias e ferrugem.
Tocou em algo frio.
Retirou um envelope enrolado e lacrado com cera antiga, onde ainda se distinguia um selo quebrado com o símbolo oval — o mesmo da gruta.
Dentro, um único papel.
Amarelado.
Rasgando-se ao toque.
Mas ainda legível.
“Antes dela, houve outra.
Não mulher, não homem.
Mas algo que se fez carne para escapar à ruína.
Chamaram-lhe Aquela Que Se Recorda,
porque a terra esquece — mas ela, não.
O nome perdeu-se nos sismos e no sangue,
mas ecoa em certos cânticos dos mais velhos.
Alzima.
Era o nome antes do nome.
A raiz de tudo.”
Duarte dobrou o papel com mãos trémulas.
Alzima.
O som não era apenas estranho — era errado.
Como um nome que não devia ser dito, mas reconhecido.
Sentiu o chão estremecer, por dentro.
Não um tremor da terra, mas da pele.
Como se ao pensar o nome, algo nele tivesse sido visto.
Saiu da casa sem fechar a porta atrás de si.
Não importava.
Aquilo que estava acordado… já o conhecia.
E ao longe, muito longe, vindo da direção da gruta — ouviu, pela primeira vez, um sussurro.
Não era Madalena.
Era mais fundo.
Mais seco.
Mais antigo.
E dizia apenas:
“Chega, Duarte.
Lembra-te de mim.”